A tempestade de ontem fez com que a classe ficasse menor. Mas não menos aconchegante. Entre bravos e corajosos, discutimos então os assuntos que seguem. Excepcionalmente, fiz um resumo da parte expositiva do encontro para os que não conseguiram estar presentes. Indico ainda uma bibliografia.
Parênteses. Como pode imaginar, não é possível transcrever aqui como foi interessante observar e comentar as pranchas do livro de quadrinhos O Circo de Lucca do Jozz – há coisas que só um refúgio da tempestade pode nos proporcionar [leia sobre o livro aqui]. Fecho parênteses.
E não deixe de experimentar o exercício ao final!
Estratégias discursivas
Link: material utilizado em sala de aula
Conforme conversamos ontem, há algumas estratégias de colocação do discurso para que soe “mais próximo”, “mais afastado”, “com maior subjetividade” (cartas de amor), “com maior objetividade” (notícias de jornal).
Tecnicamente essas estratégias são denominadas de debreagem enunciva ou debreagem enunciativa: se estiver acentuando o enunciado (o que é dito) ou a enunciação (a instância da qual se fala).
Com a debreagem enunciva, o discurso terá um efeito de distanciamento. Exemplos são o uso da terceira pessoa (“ele”), tratado em outro tempo (“então”) e outro espaço (“lá”).
Com a debreagem enunciativa, o discurso terá um efeito de aproximação. Exemplos são o uso da primeira pessoa (“eu”), que simula estar em um tempo e espaço presentes (“agora” e “aqui”).
Conforme o Luiz Tatit*, “ambos os efeitos são ficções que devem ser tomadas como estratégias persuasivas desenvolvidas pelo enunciador geral do texto. Fazendo uso da debreagem enunciva, ele causa a impressão de objetividade, o que pode ser útil em alguns gêneros literários (como o épico), numa tese acadêmica ou na confecção da primeira página de um jornal diário. Atendo-se à debreagem enunciativa, o enunciador investe na impressão de subjetividade, o que pode favorecer outros gêneros literários (como o romântico), os textos de depoimento ou confidência e as manifestações líricas de modo geral. Todas essas estratégias têm como objetivo fazer com que as coisas ditas pareçam, de acordo com o contexto discursivo, verdadeiras”.
Ainda faço notar que a inversão desses procedimentos são muito interessantes para a criação literária. Por exemplo, usar o efeito de distanciamento em um texto que se pretendia confessional auxilia na quebra de expectativas – vamos sair do lugar comum. Experimente. Segundo o Maiakóvski, o poeta é aquele que constrói as suas próprias regras.
Para quem acha muito interessante tudo isso, sugiro a leitura:
* Introdução à Linguística – volume I, organização de José Luiz Fiorin (as informações acima foram retiradas do capítulo redigido pelo Luiz Tatit, A abordagem do texto)
As Astúcias da Enunciação – as categorias de pessoa, espaço e tempo, de José Luiz Fiorin
Tópicos de semiótica: modelos teóricos e aplicações, de Antonio Vicente Seraphim Pietroforte
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Vamos ao exercício:
Seguem quatro excertos dos textos que comentamos em aula – respectivamente retirados de Rabo de Foguete e Poema Sujo, ambos do Ferreira Gullar.
Verifique como o autor se utiliza de:
- tempos verbais, criando relações de concomitância, anterioridade e posteriodade
- advérbios como “aqui”, “ali”, “lá”, que fornecem relações espaciais
- pronomes como “este(a)”, “esse(a)”, “aquele(a)”, que retomam termos ou ideias, afastando ou aproximando o discurso
- conjugação de 1ª ou 3ª pessoa do singular ou plural, fornecendo ao texto maior ou menos subjetividade
Reescreva um dos excertos na caixa de comentários alterando especificamente estes parâmetros. Depois responda: qual o efeito de sentido que se percebe com a mudança?
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OPÇÃO A
“Era tal sua consciência partidária e revolucionária”, afirmou Alfredo, “que, ao sair da prisão, Manuel nem sequer foi ao encontro da esposa, que não via há vários anos. Engajou-se imediatamente na ação revolucionária clandestina.”
“Não me diga, camarada! Com tantos anos sem ver mulher, o Manuel não foi nem em casa dar uma bimbadinha na patroa?”, indagou Luís.
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OPÇÃO B
“Como vai a luta revolucionária no Brasil, camarada?”, perguntou efusivo e grave o dirigente português ao cumprimentar Giocondo Dias.
“Aquilo está uma merda, companheiro”, respondeu Giocondo, para desapontamento de Cunhal.
Também foi com os companheiros portugueses que ocorreu uma conversa de que participei na lanchonete do Instituto. Estávamos ali, eu, Luiz, Sérgio e Júlio com dois companheiros portugueses, um deles o Alfredo, que fazia comigo o curso de “O Capital”.
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OPÇÃO C
e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida
Como se perdeu o que eles falavam ali
mastigando
misturando feijão com farinha e nacos de carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
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OPÇÃO D
Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
ou dentro de um ônibus
ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris
perfeitamente fora
do rigor cronológico
sonhando