início do Módulo II

Com certa expectativa e algumas caras novas na sala de aula, iniciamos ontem o Módulo II de nossa oficina. O tema foi o tempo. E como é difícil de conversar sobre isso quando nos aproximamos da modernidade!

Assistimos as tomadas iniciais de “Cidadão Kane” e a antológica cena em que os pais do pequeno John autorizam que fique sob a custódia do banco. Recomendo vivamente que juntem alguns amigos conversadores e assistam na íntegra.

Bem, espero que o encontro tenha sido proveitoso. Seguem os dois textos lidos e comentados.

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Pequena Fábula

“Ah”, disse o rato,“o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.” ― “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato e devorou-o.

Franz Kafka, tradução de Modesto Carone

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Gestalt

Absorto, centrado no nó das trigonometrias, meditando múltiplos quadriláteros, centrado ele mesmo no quadrado do quarto, as superfícies e cal, os triângulos de acrílico, suspenso no espaço por uns fios finos os polígonos, Isaiah o matemático, sobrolho peluginoso, inquietou-se quando descobriu o porco. Escuro, mole, seu liso, nas coxas diminutos enrugados, existindo aos roncos, e em curtas corridas gordas, desajeitadas, o ser do porco estava ali. E porque o porco efetivamente estava ali, pensá-lo parecia lógico a Isaiah, e começou pensando spinosismos: “de coisas que nada tenham em comum entre si, uma não pode ser causa da outra.” Mas aos poucos, reolhando com apetência pensante, focinhez e escuros do porco, considerou inadequado para o seu próprio instante o Spinoza citado aí e cima, acercou-se, e de cócoras, de olho-agudez, ensaiou pequenas frases tortas, memorioso: se é que estás aqui, dentro da minha evidência, neste quarto, atuando na minha própria circunstância, e efetivamente estás e atuas, dize-me porque. Nas quatro patas um esticado muito teso, nos moles da garganta pequeninos ruídos gorgulhantes, o porco de Isaiah absteve-se de responder tais rigorismos, mas focinhou de Isaiah os sapatos, encostou nádegas e ancas com alguma timidez e quando o homem tentou alisá-lo como se faz aos gatos, aos cachorros, disparou outra vez num corre gordo, desajeitado, e de lá do outro canto novamente um esticado muito teso e pequeninos ruídos gorgulhantes. Bem, está aí. Milho, batatas, uma lata de água, e sinto muito o não haver terra para o teu mergulho mais fundo, de focinhez. Retomou algarismos, figuras, hipóteses, progressões, anotava seus cálculos com tinta roxa, cerimoniosa, canônica, limpo bispal Isaiah limpou dejetos do porco, muito sóbrio, humildoso, sóbrio agora também o porco um pouco triste estragando-se nos cantos, um agrado-ternura nos dois olhos, e por isso Isaiah lembrou-se de si mesmo, menino, e do lamento do pai olhando-o: immer krank, parece, immer krank, sempre doente parece, sempre doente, é o que pai dizia na sua língua. É doença não é Hilde? Hilde sua mãe, sorria. Ach nein, é pequeno, é criança, e quando ainda somos assim, sempre de alguma coisa temos medo, não é doença Karl, é medo. Isaiah foi adoçando a voz, vou te dar um nome, vem aqui, não te farei mais perguntas, vem, e ele veio, o porco, a anca tremulosa roçou as canelas de Isaiah, Isaiah agarrou-se, redondo de afago foi amornando a lisura do couro, e mimos e falas, e então descobriu que era uma porca o porco. Devo dizer-lhes que em contentamento conviveu com Hilde a vida inteira. Deu-lhe o nome da mãe em homenagem àquela frase remota: sempre de alguma coisa temos medo. E na manhã de um domingo celebrou esponsais. Um parênteses devo me permitir antes de terminar: Isaiah foi plena, visceral, lindamente feliz. Hilde também.

Ficções, Hilda Hilst, (Pequenos discursos e um grande), Ed. Quíron, 1977.

Sobre ana rüsche

Escritora, nascida em São Paulo, em setembro de 1979.
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2 respostas para início do Módulo II

  1. Bruna Nehring disse:

    não quis interromper a projeção, e depois as conversas, para pedir a atenção em um detalhe surpreendeu bastante: logo no inicio do filme vimos o Cane morrer largando a bola que se espatifa nos degraus do leito de morte( chiquíssimos), porém a cena da entrada da enfermeira no quarto, é vista como se fosse de mais longe e de forma completamente arredondada como se vista atravez da bola de cristal ainda inteira. Uma inversão de tempo bastante significativa, uma reticência sobre os feitos do homem que seriam mais duradouros do que a vida física do personagem.- Welles era capaz de chegar a tanto.

  2. ana rüsche disse:

    Bruna!
    Li o teu comentário apenas hoje. Pois deveria ter interrompido – este detalhe que você apontou é muito importante. Na realidade, as cenas todas são cheias de detalhes.
    Amanhã comentarei em classe! Até lá.

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